*Esse texto contém gatilhos sobre violência doméstica*
Não sou uma pessoa extrovertida. Não consigo ser aquele tipo de pessoa que chega em qualquer lugar, começa a conversar com alguém, que senta ao lado e fala durante horas como se fossem velhas amigas. Hoje em dia não sou assim, não sou mais aquela criança tagarela, que sempre chamava a atenção quando chegava em qualquer canto, que dançava com qualquer música, que não ligava para quem lhe olhava, pois só queria ser criança. Que imaginava que a vida era bela, que sempre tudo seria do mesmo jeito, a mesma casa, o mesmo endereço, que sempre teria os pais por perto.
Agora me encontro aqui enfurnada no quarto, lendo um livro de uma leitura coletiva que eu já sabia que não ia conseguir cumprir, mas ainda estou tentando terminar. O livro é do gênero fantasia como sempre, na verdade é meu gênero literário favorito, pois me permite imaginar ou tentar encontrar no mundo da fantasia algum lugar que eu poderia chamar de lar.
Um lugar eu sempre poderia voltar, principalmente quando tudo desse errado ao meu redor, o Kindle continua na minha mão direita mas meu olhar está lá fora para além da janela do meu quarto, enquanto continuo a fantasiar a minha vida em Nárnia, Hogwarts ou sei lá em qualquer lugar do universo.
Já são quase 10h da manhã de um típico sábado de começo de inverno, apesar do sol algumas nuvens cinzas complementam o desenho de céu acizentado, anunciando uma possível chuva ao longo do dia em São Luís. Essa é a imagem que vejo lá fora da janela, até que minha mãe bate na porta do quarto e me faz voltar dos meus pensamentos e devaneios. Tenho quase certeza que ela ainda não desistiu da ideia de eu ir no almoço de aniversário da mãe do namorado novo.
— Você tem certeza que não quer ir?
— Mãe a senhora não percebe o quanto isso é estranho para mim? Eles não são minha família.
— Eu sei Joana, mas não faz bem você passar o dia todo aqui sozinha em casa.
— Dona Tereza a senhora que é a namorada do Roberto então tem praticamente a obrigação de ir no aniversário da sogra, o que não é o meu caso.
Depois disso um silêncio quase mortal paira no ambiente por alguns segundos, até que minha mãe acena com a cabeça, se dando por vencida depois da minha resposta, sai do quarto sem dizer nada, me deixando sozinha de volta aos meus pensamentos. Seria muito estranho almoçar com uma família de pessoas desconhecidas, mas ficar em casa sozinha também me parece um programa meio deprimente. Estou no auge dos meus vinte anos, o que eu deveria estar fazendo? Descobrindo quem eu sou, viajando, conhecendo pessoas e lugares além dos meus mundos literários, mas estou aqui em um sábado de sol, enfurnada no meu quarto lendo.
Deixei o Kindle na mesinha ao lado da poltrona e me joguei na cama de barriga para cima, enquanto me vinha na mente as palavras da minha mãe, sobre como não me faria bem ficar sempre só, entre tantas coisas que ela vive me falando. Levantei da cama e fui até a porta falando quase como um grito que ecoou pelo pequeno corredor.
— TÁ TUDO BEM EU VOOUU NO ALMOÇO!
Minha mãe que estava saindo do banheiro, ainda com a toalha enrolada no corpo, tomou um susto, mas deu para perceber o sorriso que ela deu entre os lábios mesmo tentando disfarçar, até que finalmente disse:
— Então vamos se não a gente perde o horário do ônibus!
Tentei colocar uma roupa que me sentisse o mais confortável possível, para estar no meio de pessoas que nunca havia visto na vida, não sei nem porque aceitei esse convite, mas acho que é sempre bom testar coisas novas né?
O almoço ocorreu tudo bem, mas eu era uma novidade ali, a família do Roberto era enorme e parecia que todo mundo havia vindo prestigiar a matriarca da família, as interações se resumiam em falas como “Nossa mas ela é sua cara Tereza.” “Vocês parecem até irmãs.” “Que filha bonita Tereza.” E eu me sentindo uma total estranha e apenas acenando e dando o meu sorriso amarelo. Depois do dito almoço fiquei na sala tentando me concentrar no filme que passava, enquanto várias conversas em mundo diferentes se concentravam ao meu redor, e eu continuava dentro do meu mundo particular.
Quando estávamos voltando para casa, mamãe sugeriu de passarmos na casa da minha vó Maria para buscar umas correspondências, que ainda mandavam pro nosso antigo endereço, que era do lado da casa dela. Eu não tinha muita opção e fazia tempo que não via minha avó, então só aceitei a ideia. Só não imaginava a surpresa que teria quando a pessoa que abriu aquela porta laranja que já demonstrava sinais da idade, não foi nada mais, nada menos que o meu pai, que eu não via há mais de 10 anos.
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Não sabia se o clima estava mais pesado lá fora com a chuva que já havia começado a cair, as nuvens que já se anunciavam desde o início da manhã, que se desmanchavam agora igual algodão doce dissolvido na boca. Ou aqui dentro nesse pequeno cubículo que é a sala da casa da minha avó, com a mesma estante de livros, que ainda me lembro, e os sofás cobertos com panos em retalhos que ela faz desde que eu me entendo por gente.
Depois de nos deixar entrar, meu pai voltou e se sentou no sofá maior, foi quando percebi como havia envelhecido, os pés de galinha nos olhos que denunciavam a idade, junto com os cabelos brancos, e a barriga de chope que só cresceu com o tempo, aparentemente ainda não havia abandonado o vício na bebida, pois a cara era de pura ressaca.
Minha avó apareceu sorridente e nos convidou para sentar no outro sofá, que claramente era muito pequeno para mim, minha mãe e o namorado. Então nos apertamos enquanto minha avó perguntava o motivo da visita e dizia o quanto eu havia crescido, enquanto isso minha mãe me cutuca e diz entre dentes:
— Vá tomar a benção para o seu pai Joana.
Então volta o olhar para o que minha avó Maria continuava a dizer lhe dando total atenção enquanto explica o motivo da visita repentina. Por uns segundos eu fiquei sem saber como agir, apenas paralisada no sofá. Por que minha mãe estava agindo daquela forma? Ela acha que eu não lembro o que aconteceu porque eu era pequena demais?
Enquanto essas e outras perguntam martelam a minha cabeça que começa a doer. Eu caminho a distância que agora parece uma eternidade entre mim e o meu pai, parece que o tempo e tudo ali me sufocam, até que finalmente chego em frente a ele e estendo a minha mão direita:
— A benção!
— Deus te abençoe!
É a única coisa que ele me diz, e volta a se sentar na mesma posição que estava antes, sem abraços, ou beijos na testa, apenas algo que vem frio e vazio emana dele para mim. Depois disso eu volto para o lado da minha mãe no pequeno sofá da minha avó, enquanto ela andava para lá e pra cá procurando as benditas correspondências.
Foi estranho ouvir a voz dele depois de tanto tempo, era como se estivesse falando com um desconhecido, um desconhecido que é o meu pai, que eu tenho genes correndo no meu DNA, mas a quem não me sinto ligada de nenhuma forma.
O clima estava muito desconfortável principalmente para o Roberto que havia dito que ia esperar lá fora, mas minha mãe empurrou o coitado pela porta praticamente, então ele não teve muita opção, com o silêncio mortal que se seguia e os únicos barulhos vindo da Dona Maria vasculhando a casa e reclamando que a memória dela já não era mais a mesma, eu me levanto e vou até a cozinha, precisava respirar, tomar uma água, colocar a cabeça no lugar ou pelo menos tentar.
Sei que isso não ia fazer diferença, quando eu voltasse a sala, sabia que não iria abraçá-lo, sabia que ele não me perguntaria sobre como eu estou na faculdade assim como eu também não perguntaria sobre sua vida, e nem eu perguntaria o motivo de ele estar ali, porque até onde eu sabia ele tinha uma outra mulher, uma outra família. Nós éramos dois estranhos um para o outro, que não faziam parte da vida um do outro, que na verdade nunca fizeram, é estranho sentir ausência de uma relação que eu nunca tive com meu pai?
Depois de tanta procura pela casa inteira, minha avó desistiu pois não fazia a menor ideia onde havia guardado as correspondências, então finalmente estávamos livres para ir embora, não me despedi do meu pai ao sair, pois ele já havia se retirado da sala. Foi estranho ver o meu pai depois de tanto tempo, minha mãe acha que eu não lembro, porque ainda era muito nova para ter guardado alguma coisa na memória, mas o problema é que eu lembro, e por isso que quando eu vi ele hoje não consegui agi como se estivesse tudo bem, que eu estava normal, porque eu não estava.
Agora me encontro aqui enfurnada no quarto mais uma vez, com os fones de ouvido tocando uma música aleatória no volume máximo, mas a cabeça a quilômetros de distância. Ter visto o meu pai me trouxe de volta muitas coisas, como flashes na minha memória, mas acontece que sobre ele não tenho as melhores lembranças, a música continua a tocar enquanto isso o sono chega sorrateiro pela minha janela.
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10 anos atrás
Uma das coisas que eu mais gosto sobre ser criança, é não ter que me preocupar com a vida, a minha única preocupação é acordar cedo para não perder o horário do meu desenho favorito na TV: Scooby-doo, e brincar o dia inteiro. Embora eu brinque quase sempre sozinha, porque minha mãe precisa ir pro trabalho, e o meu pai vive quase sempre em um tal de bar do seu Zé, eu não sei o que tanto ele faz nesse bar do seu Zé, mas sei que mamãe não gosta de como ele vem de lá, e muitas vezes nem deixa ele chegar perto de mim ao chegar em casa.
Eu tenho 10 anos então ainda não sei muita coisa da vida adulta, ou que as pessoas fazem em um bar, acho que deve ser algo muito divertido, papai deve ter amigos por lá e por isso que vai quase todos os dias, fica lá o dia quase inteiro voltando pra casa só pela noite.
Mas eu não tenho problemas em ficar sozinha em casa, tenho a televisão, os meus brinquedos e minha imaginação alimentada pelo meus livros, mamãe sempre deixa comida na geladeira também. Claro que eu adoraria ir pra rua e brincar com meus amigos, mas isso só acontece nos dias que mamãe está de folga, e esses dias estão cada vez mais raros, principalmente depois que o papai perdeu o emprego que tinha em uma empresa na cidade, e desde esse dia ele começou a frequentar o bar de seu Zé mais vezes do que já fazia antes.
Embora eu não veja sempre mas eu sei que mamãe e papai brigam, só não sei o motivo, eu sempre vejo ela chorando e sei que alguma coisa a deixou assim, mas ela diz que eu sou muito nova pra entender, que aquilo é “coisa de gente grande”, só que assim como meu pai começou a ir mais vezes no bar do seu Zé, mais vezes eu tenho visto a mamãe chorar. Já ouvi uma vez durante uma briga deles dois outro dia, mamãe chamar ele de irresponsável, essa é uma palavra bem grande que ainda não sei o que significa exatamente, mas acho que não é algo bom, porque o papai ficou furioso quando ouviu.
Enfim hoje vai ser mais um dia que vou ficar sozinha em casa, e esperar a mamãe chegar do serviço para fazer o jantar, estou ansiosa porque ela disse que hoje ia fazer o meu prato favorito, cuscuz com salsicha, e só de pensar já fico com água boca, eu sinto que hoje vai ser um dia incrível, finalmente tiro o lençol de cima de mim, estico as pernas pra fora da cama, e caminho a passos sonolentos para televisão na sala, pois meu desenho já vai começar.
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Já estava deitada na minha cama, quando escuto um barulho muito forte vindo lá de baixo, parecia que alguém batia na porta da nossa casa com muita força, pulei da cama assustada, tirando o lençol que me cobria, quando as meias coloridas tocaram o chão frio, pois já eram quase 1h da madrugada, mamãe aparece no meu quarto quase no mesmo instante.
— Mamãe o que tá acontecendo?
— Joana, não sai aqui do quarto tá bom?
— Mamãe o que tá acontecendo? Cadê o papai?
— Minha filha fica aqui, e confia em mim.
Aceno que sim com a cabeça enquanto algumas lágrimas começam a brotar dos seus olhos, ela tenta disfarçar, mas não sou boba, eu percebo que ela está preocupada, suas mãos tremem quando as coloca no meu ombro, dizendo que vai ficar tudo bem, eu só obedeço o que ela me pede, sento na beirada da cama, enquanto a vejo descer as escadas em direção a origem de todo aquele barulho, e é quando percebo que é a voz do papai chamando, mas é uma voz de raiva, de fúria, e isso me faz ficar com um medo que nunca havia sentido antes. O barulho na porta continua cada vez mais forte, eu continuo sem entender nada do que tá acontecendo, por que a mamãe tá chorando? por que ela não deixa o papai entrar em casa?
Percebo que estou tremendo, e o meu jantar se revira no estômago, o cuscuz que mamãe havia feito estava tão bom, mas papai não estava aqui ainda pra experimentar, e agora ele tá batendo como um louco na porta de casa, não consigo reconhecer quem é aquela pessoa, mas não é o meu pai.
De repente, o barulho para e escuto que a porta se abriu, em seguida vários barulhos vem preenchendo o ambiente até chegar aqui no quarto, algo de vidro se quebrou, meu pai dizendo coisas que não consigo ouvir ou entender direito, minha mãe pedindo pra ele se acalmar, até que eu escuto um barulho que me faz descer as escadas correndo... o papai bateu na mamãe.
Quando chego na sala, parece que estou sonhando, aquilo tudo é um pesadelo, olho pro meu pai e só vejo um monstro que exala um fedor de cigarro e bebida com grandes olhos vermelhos, ao me ver ele vai embora pela mesma porta que segundos atrás estava pedindo pra entrar, mamãe está no chão quando me olha seus olhos se abrem e consigo ler em seus lábios dizendo pra eu não ir até ela, quando no mesmo instante eu corro e me abraço junto dela em meio as lágrimas.
— Joaninha, minha filha mamãe não disse pra você ficar no quarto?
— Mãe....
Eu só digo isso enquanto mais lágrimas brotam dos meus olhos e ficamos ali abraçadas enquanto o tempo parece que congelou naquela cena, ajudo mamãe a se levantar, enxugo suas lágrimas, e vejo seu rosto cansado, ela me dá um sorriso de lábios fechados até que finalmente me diz:
— Minha filha, você confia na mamãe?
— Sim mamãe...
— Joaninha nós vamos brincar hoje de casa nova tá?
— Como faz isso mamãe?
— A gente pega tudo de importante que tem aqui nessa casa e vamos pra outro lugar...
— Tá bom mamãe.
Aquele dia foi a última vez que vi meu pai, aquela casa, aquela rua, aquela televisão, aqueles brinquedos, aquela Joana que via tudo lindo e bonito na vida, até eu descobrir que naquele episódio, o monstro era o papai.
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De repente eu acordo assustada, meu coração bate tão rápido que parece que vai sair pela boca, estou suando e minhas mãos tremem, é como se ainda conseguisse ouvir os gritos, as batidas dele na porta, o choro da minha mãe, naquele dia eu descobri que o monstro daquele episódio era o pai, e isso eu nunca iria esquecer.
Tento focalizar onde estou, até que entendo que estou no meu quarto, o sol já entra sorrateiro pelas cortinas dançando em flashes de luz, meu coração começa a se acalmar, quando meu corpo começa a entender que eu estou segura, que foi apenas um sonho, ou melhor uma lembrança ruim que minha memória tentou apagar mas que ainda está aqui em algum lugar, e depois de ter visto o meu pai ontem me veio à toa.
Quem eu teria me tornado? O que teria acontecido na minha vida? Eu ainda seria aquela menina alegre e extrovertida? A gente sairia aos finais de semana como uma família? Meu pai chegaria do trabalho e me colocaria no seu colo e me contaria histórias? Ele faria uma festa quando eu tivesse passado no vestibular?
Depois daquele dia, tudo mudou, não existia mais dia dos pais, não existia mais almoços em família, naquele dia o meu castelo de areia foi levado pela maré e pelo vento, em uma forma de uma violência de quem deveria me dar amor, por quem deveria ser o meu pai. Naquele dia os meus sorrisos foram roubados, naquele dia a alegria da menina que via o mundo da maneira mais bela e singela foi tomada. Quem eu sou hoje? Ainda estou tentando descobrir.
Agora com minha respiração mais calma, me levanto devagar da cama, e caminho até o banheiro, onde vejo meu rosto no espelho, tudo aquilo que estava dentro de mim vem em forma de lágrimas que escorrem pelo meu rosto, eu desmorono ali mesmo, choro como uma criança que teve o doce tomado, deixo sair aquele sentimento de angústia e de medo, depois jogo o pouco de água no rosto com as mãos, olho no espelho e repito como um mantra para tentar me acalmar:
— Joana você está bem. Joana você está viva. Joana você está segura. Aqui ele não vai te machucar.
— Joana você está bem. Joana você está viva. Joana você está segura. Aqui ele não vai te machucar.
— Joana você está bem. Joana você está viva. Joana você está segura. Aqui ele não vai te machucar.
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